Rua Corcovado

subo o morro para a
casa e concentro nas
coxas toda a dor da subida 
lembro de tanta coisa 
durante o percurso
e a única saudade que 
sinto é de quando minha
mãe, caminhando, me dizia:
filha, vou colocar o nome
dela no açucar para ela 
ficar doce - ou você quer
que coloque no gelo?
eu não entendia nada
suspirava e ria
ai ai, mãezinha...

Amanhã a gente faz

bom demais para ser
verdade seria se essa
transação tivesse sido
efetuada com sucesso
senhora
mas isso pouco acontece
na primeira tentativa aqui
a primeira tentativa aqui 
é sempre aquela que me 
faz ir para a cama tratar 
o erro do sistema como
 o mundo todo trata

Ebó

tudo o que tenho agora
é essa música que não 
tem sequer uma palavra
a partir de hoje eu só 
acredito em coisas que
começarem caladas

Dia vinte e quatro

a vida encena algo
que eu não entendo
chego em casa e
coloco Erik Satie
hoje 
só hoje
eu estou com medo 
das palavras

Domingo

Belo Horizonte tem ruas 
bonitas para andar 
especialmente durante a noite
quando todos se recolhem
e a cidade fica vazia 
de pessoas que adoecem por 
falta de paixão e se trancam em apartamentos
esmaga-dores
eu ando por aí e meu único medo 
é de você me ver atravessando
uma rua qualquer e não parar o carro

Dou o poema por encerrado

eu ainda não sei o que 
fazer com o fim dos dias
as repetições incomodam
assim como os joelhos
dobrados por um longo tempo
espicho todo o corpo na cama
que era nossa
e me assusto quando
sem perceber
você entra no meio do poema

Para ler andando

guarda esse livro
ninguém lê enquanto anda,
disse uma senhorinha ao neto
ao sair apressada do café
minha senhora,
as palavras abrem caminhos

Nove sete nove um

ontem eu descobri
que andar na rua
olhando as placas dos carros
é somente um 
mecanismo de alerta
e por isso
meu amor
se a paixão voltar de ré
fica avisado
meu coração já parou de bater
para o que eu chamava
de destino
será que você sabe
meu amor
que é Bethânia quem canta
Canção III
ou foi sem querer
que você convidou
ela pra voltar pra casa e ficar
fica pra sempre
Bethânia
porque é você 
e só você 
quem canta o meu amor por ela
será que você sabe
que hoje estou por extenso
presa por um pregador
estendida num varal
deixando a dor escorrer
e molhar a terra
e você vem
e pisa nela
e torce o pé
e cospe
e essa dor ainda é tão minha
mesmo no chão
não faz isso comigo
por favor
eu sabia que não devia
ouvir aquela música
maldita bethânia
e agora eu só penso naquela frase
que me diziam quando 
eu nem entendia nada de mim
dois pontos
cuidado com o que você deseja

Falta de ar

saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade
saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade
saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade
sufoca a alma e aaaaaaaah me segura que vou dar um troço 
saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade
saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade
saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade

saudade.

Autossabotagem

paro 
olho 
e espero
o telefone tocar
ou você aparecer
do nada
na minha frente
me trazendo flores
e me fazendo um convite
pra jantar: só essa noite, 
você me diria
com um pouco de medo
e eu aceitaria
porque eu te amo, meu amor,
esse céu todo azul me lembra você
meu fascínio por uma
vida sem saudade não existe mais
mas aí eu me lembro
que quem brigou
com você fui eu
e eu não quero mais
nada com você
por Deus, eu não
quero mais nada com 
você!
então, por favor,
entenda e
não fique no meio
do meu caminho -
a não ser para me
trazer flores
ou para me convidar para 
jantar só essa noite

hoje acordei e, como há muito tempo não me acontecia, o amor não foi o meu primeiro pensamento. mas me veio a mente, agora, que o abrir dos olhos já é, de certa forma, amar. e que o ato de amar o outro deveria ser fácil e natural como esse movimento logo ao amanhecer. você tem a luz do dia, o canto leve dos pássaros e o verde reluzente das árvores. 
logo ali. num outono. iluminando você.

abrir-se ao re-começo e, sobretudo, abrir-se ao - sempre sempre sempre novo - amor.
é domingo.
você abre os olhos e não acredita. ela não está onde deveria, mas te sorri tímida do porta-retratos, que você não consegue expulsar da estante. os ponteiros marcam algo entre o número oito e o número nove, mas você não sabe quantas horas ainda faltam para aquela dor acabar. você acende um cigarro pra tentar diminuir a vida. na cama, travesseiros ocupam o lugar do corpo dela. lá fora chove a cântaros.

solidão.

Eu, passarinho

coração de passarinho
não calcula distância
quando sente saudade, 

voa.