Sexo heterodoxo, lapsos de desejo e Caetano


Ela brinda a vida erguendo uma taça de ilusão sem gelo e fala de sexo como se fizesse sexo todos os dias. Um dia, Caetano a chamou de menina deusa urbana e depois admitiu baixinho que não tinha medo de se apaixonar por ela. O que ela quer é sair fodida das paixões. Quer abrir as pernas de tanta paixão, quer viver de paixão. Quer respirar o inferno. Quer meter a cara nos escombros, destruir os cenários dessa vida medíocre e gritar os orgasmos que sente toda noite sozinha no quarto. Todas as noites ela brinda a vida e ergue uma taça de solidão, fala de sexo com Caetano, deita com as paixões e acorda com as ilusões que brindou na noite anterior. Hoje, ela fumou um cigarro na janela do quarto dela para sair da rotina e não gostou do gosto. Preferia o gosto dos paus duros que chupa quando não grita de gozo sozinha no quarto. Ela não se culpa por beber quatro ou cinco cervejas para brindar o amor que não chega. Ela não gosta do amor. Ela não se arrepende de ouvir Caetano todas as noites dizendo que não se arrepende. Ela também não se arrepende, Caetano. Ela respira por sexo, pernas tremendo, boceta molhada, beijo na boca, língua no corpo e sai farejando na rua feito cachorro, com a maquiagem escorrendo e uma garrafa na mão. Rebola pela cidade gritando um ódio pela paixão estampada na cara, enquanto tira a roupa toda. Ela quer viver fodida de paixão. Vestir vermelho, pintar as unhas, prender os cabelos, levantar os peitos e foder. Fica nua. Fica bêbada. Fica cheia de paixão no corpo e o corpo querendo sexo. Só sexo. 

Fiz do meu corpo um livro de poemas pra você


Fiz do meu corpo um livro de poemas:
rabisquei nas curvas palavras de Pablo
Ferreira e Carlos:
os doces bárbaros
e eu e você
e as rimas fáceis do amor de Cazuza
que para ler é preciso comer
Escrevi o canto de Vinicius e seus nove amores perdidos
em português
Álvaro, Alberto, Ricardo e Bernardo
Fernando - exclamei
quase um fado!
Fiz versos que me habitam
de Bárbara
[cala a boca!
De Nina e Geni
e das tantas mulheres de Chico
[e minhas
que com outros nomes e mesmos nomes de sempre
me amam e desamam
em tempo perdido
em tempo corrido
na falta de tempo
no excesso de gente
sendo assim o tempo todo
vazia de mim.
ficou tarde demais.

Ou o amor?


hoje eu fiquei para ver os palhaços
com tristes sorrisos na cara – eu ou eles
- se somos os mesmos de sempre?
todos caras-pintadas de amor
malabares no céu da minha boca
acrobacias com cordas no meu pescoço
bamboleando meu corpo no seu
num monociclo, levamos a vida
te convido: vamos fugir com o circo?
da corda bamba, caio em você e te faço um palhaço também.
mas hoje eu fiquei mesmo só para ver os palhaços.
assim,
meio cara de palhaça e a cara inteira borrada.
devo ter um motivo para ser um também
a vida no circo é assim mesmo.


Mudando o rumo da conversa

Agora a história é outra:
Chega de amor!
Seu trompete canta triste demais na entrada e na saída do ouvido ao peito.
Chega de jazz prum coração cheio de soul.
Sem blues, senhor. Sem blues, meu amor.

Quando o verbo entrega o texto

Trec.
Faz a coluna.
Braços esticados pra cima. Cabeça erguida. Levanta. 
Estica também as pernas e vai.
Trec.
Torce o pescoço.
Olha pro lado. Vê novos rostos. Beija outras bocas.
Fecho os olhos.
Trec.
E a vida deveria estalar também.
Cadê nosso amor?

Senhor francês II

Acho graça quando você joga seu francês
por aí
par la fenêtre ouverte
- feito vento. feito ar. feito pra mim -
et dit:
Ma vie commence avec toi.

Senhor francês

Eu podia tentar decifrar sua língua durante um dia todo. 
Todos os dias. 
C’est la vie. 
Esperar uma surpresa invadir meu dia pela sua boca. 
Je suis arrivée. C'est la deuxième fois. 
Ne me quitte pás. 
Et moi?
Je suis avec toi pour toujours. 
Pour toujours.

Cartão-postal

Ouvir Rita Lee cantando a despedida assim sem o menor sentimento de culpa me faz lembrar o dia que você foi embora. Projeções de um rosto-branco-sem-remorso-de-estar-indo-embora-pra-sempre num fundo preto. A boca mexendo suavemente ao perguntar “Pra que sofrer com despedida?” Quase dá para perceber a desilusão da vida no meio de suas caretas ou um sorriso vermelho e irônico quase abrindo para uma gargalhada. Inevitável. Parece querer começar a rir de mim e do meu rosto-meio-triste-de-quem-ainda-vai-encontrar-no-adeus-a-esperança-escondida. Vamos rir do que é triste. Eu simplesmente não consigo parar de sofrer, Rita.

Cercada do que não existe

Ontem passou tão rápido que passou - e ficou - pela minha cabeça que aquilo não era amor. Eu vim de um lugar que não tem nome e estou indo, acompanhada de tristeza, para lugar nenhum. Ontem eu dormi preparada para morrer, com as duas mãos repousadas no meu peito e a respiração quieta demais. Compreensivelmente triste e quieta, eu rezei. Rezei para minha vida acabar daquele jeito: com a sensação de que o amor não existe, de que a morte chega com a noite e de que eu acredito em Deus.

Depois do amor, tem vírgula

Você ama e depois respira. Um tempo curto para o ar entrar e fazer o serviço no seu corpo. Você ama, respira e continua. Era isso que eu queria te dizer quando você me chamou de amor, porque eu não sou seu amor, se você não respirar antes. O amor não existe aqui. Eu não sou o amor. Eu não tenho isso. Eu sou o que restou do amor e o que restou de você. Sou suas sobras. Suas migalhas. Seu lixo. Seu esterco. Seu avesso. Seu cansaço. Seus machucados com vários esparadrapos sujos de sangue. Sou seu sangue estagnado. Sou sua pele ralada. Sou a pedra que você tropeça. Sou a doença que você pega. Sou a bactéria do seu travesseiro. Sou a bactéria do vaso sanitário que você senta. Sou a poeira por querer. Sou seu choro sem ombro. Sou sua falta de gosto. Sou sua cicatriz. Sou sua merda! Sou todas essas merdas cuidadosamente separadas em potinhos à venda no mercado da esquina da sua rua cheia de mendigos que roubam sua vista e te pedem o dinheiro que você nunca tem, porque você é pobre demais para dar seu dinheiro a eles, seu hipócrita! Eu sou tudo isso e você ainda me chama de amor. Eu não tenho voz. Não tenho nem garganta. Eu não tenho fôlego. Não tenho nem força. Eu não tenho olhos. Eu não uso óculos. Eu não sinto cheiro. Eu não tenho tato. Eu não tenho ouvido. Eu não tenho língua. Eu não tenho você. Eu não quero mais você. Eu não tenho amor. Eu não quero mais o amor. O amor me fez sangrar. O amor empola a pele e rouba resto de ar que você tem para depois que você amar. 

O amor dos dois II

Eu não sei se já consigo usar o passado pra nós. Esse é o nosso quinto janeiro. Há cinco janeiros o meu amor vive de esperança. Por aqui, chove há cinco verões. Dos calorosos e coloridos verões de sempre, esse chegou ao contrário. Soa estranho falar sobre a estação do calor assim, mas março faz hora pra chegar. Junto com a chuva, janeiro trouxe uma ilusão para afogar todos os meus verbos e suas conjugações futuras e passadas e tanto faz. Uma – mais uma? - tentativa de afogar o meu amar, o meu querer, o meu viver e tirar do fundo dessas lágrimas o meu esquecer, pra lembrar que, a partir do resto desse mês número um, o mês do recomeço, você ficou preso no início de um ano qualquer perdido pela vida. É assim, mas ainda todos os meus verbos caminham direto para sua saliva, vão de encontro com sua piscina de pele clara, fazem morada na água que encharca dos seus cabelos depois do banho e ressurgem nas gotículas de suor depois de um dia de trabalho, mas não morrem nas lágrimas. Transborda você em mim. Transborda amor. Como é patético ainda eu ter amor por você em janeiro. Em janeiro tem excesso de chuva, excesso de lágrimas, excesso de água. Não existe rua para o amor passar em janeiro. Passa sempre na televisão pra todo mundo ver que janeiro não foi feito para amar. Aí, todo mundo chora de uma vez pra acabar com a dor mais fácil. Vamos acabar logo com isso que em janeiro tudo afoga mesmo, não é? Não. O amor não afoga em janeiro. É assim mesmo. Em janeiro, todo mundo chora.